16.7.10

A odisséia

O panfleto dizia haver uma revelação estarrecedora a respeito de como era a vida na era humana. A palestrante estava 20 minutos atrasada, o que deixava a plateia ainda mais ansiosa. Muitos experimentavam essa sensação pela primeira vez.

Era um galpão antigo, contava com antigas poltronas que não se moldavam automaticamente ao corpo da pessoa sentada. Os 2 telões de 180 polegadas ainda eram de OLED e, por incrível que pareça, ainda usavam cabos, tanto para conexões de áudio e vídeo quanto para alimentação elétrica. Mas eles gostavam assim, criava o ambiente propício para se falar do passado.

Ouve-se então um ruído metálico quando a cabine de teletransporte é acionada. como os demais itens do galpão, era um máquina antiga, com mais de 80 anos, mas que havia sido recuperada e voltado a funcionar.

Depois de alguns estalos e rangidos, eis que surge a palestrante. Mirna Stewiskovich, uma albina de 23 anos que possuía antepassados russos.

O silêncio na platéia era sepulcral.

-- Um viva a vida! - Saudou
-- VIVA !!! - respondeu um unissono a platéia.

Mirna era uma grande estudiosa do passado e do modo de vida na chamada era humana. Por alguma falha na manipulação genética, desde 2432 muitas pessoas haviam nascido com sentimentos. A era humana havia sido encerrada em 2115, dando início à era da convivência. O governo da Terra, liderado pela República Socialista Democratizada da China, determinou que todos os bebês nascidos a partir de 1 de Janeiro de 2115 deveriam ter seus códigos genéticos manipulados para que não houvessem mais sentimentos e emoções no ser humano.

A cópula foi proibida. Todos os bebês deveriam ser gerados em úteros artificiais, por inseminação.

Apesar de em pleno ano 2514 milhares de pessoas terem nascido com alterações no DNA de modo que pudessem ter sentimentos, Mirna havia uma sobrecarga altíssima de emoções. Foi ela quem descobriu que o que sentia por seu colega de pesquisas tecnológicas era amor.

-- Desculpem-me pelo atraso - continuou Mirna - estava muito nervosa para essa palestra. Mas tenho revelações que provavelmente chocarão àqueles que conseguem sentir-se chocados.

Mirna discursou por aproximadamente 25 minutos, explicando que havia descoberto em suas pesquisas secretas sobre o passado que cerca de 500 anos atrás as pessoas conseguiam, assim como ela, sentir amor. Explicou o que era o amor, como era ter esse sentimento, para perplexidade da platéia

Por fim, Mirna fez sua revelação maior:

-- No passado, há cerca de 500 anos, as pessoas trocavam fluídos corporais - A platéia estava em choque (ou quase isso) - e essa troca de fluídos podia gerar um novo ser.
-- Você quer dizer uma nova pessoa? - Perguntou um jovem na platéia
-- Sim, uma nova pessoa, que era gerada durante nove meses na barriga do ser humano de sexo feminino e depois vinha ao mundo; nascia!

A confusão foi geral. Todos falam ao mesmo tempo. Alguns ficaram curiosos, outros espantados. Muitos choravam. Um caos!

Mirna pediu silêncio, pois não havia acabado.

-- Durante minhas pesquisas, encontrei um antigo dispositivo, chamado Disco Rígido. Basicamente era um dispositivo para armazenamento de informações. Após contar com a ajuda de diversos especialistas, conseguimos acessar as informações e o que encontramos é ímpar.

Nesse momento as telas foram ligadas e o que viu-se foi um documento. Todos pararam para ler o que continha este documento, reproduzido abaixo:

"Este texto era pra ter sido escrito há pouco mais de 2 meses, porém a correria foi tanta que essa tarefa foi postergada diversas vezes. Mas antes tarde do que nunca!

No dia 07.05.2010 um amigo me ligou para parabenizar-me, afinal um dia antes havia nascido minha filha Marina. Ele então fez a seguinte pergunta: "e aí, cara, como é a sensação?"

Minha resposta, sem titubear, foi "tenha um filho, agora!"
Hoje é muito mais tranquilo escrever sobre esse fato, já que minha princesinha está com 2 meses e 10 dias, já não sofre tanto com as cólicas, já nos deixa, minha esposa e eu, dormir boa parte da noite e, principalmente, já nos reconhece e sorri para nós.

Mas o que quero dizer é que a sensação é inenarrável. Não tem como explicar. Posso apenas dizer que é uma sensação diferente de qualquer outra que já tenha sentido na vida. Não se compara a ganhar aquele brinquedo que você tanto queria de Natal quando criança, não passa perto do prazer do primeiro beijo, não chega nem próximo ao êxtase da primeira relação sexual. NADA!

Talvez, e digo talvez porque não sei ao certo se a descrição é válida, a sensação de ser pai seja próxima de um misto de alegria, euforia, medo (muito medo), ansiedade e, por que não, poder.

Agora tenho minha própria família. Ok, pertenço à uma família, mas agora tenho a minha própria. Continuo sendo filho, mas agora sou PAI.

Seus valores mudam. Sua visão do mundo muda. Sua visão da própria vida muda. Enfim, sua vida muda. Na verdade, é quase como sua vida não mais existisse, agora o principal é aquela vida que está começando ali, nos seus braços. A vida daquele pequeno serzinho cuja responsabilidade é sua. Alimentar, criar, educar, sustentar, encaminhar... Tudo isso é sua responsabilidade.

Como disse, sua visão sobre tudo muda e então você passa a perceber o valor que seus pais têm ou tinham. Valor esse que você, mesmo que soubesse, não tinha ideia da dimensão.

Muitos podem não concordar com isso, afinal vemos nos jornais mães e pais que maltratam, abandonam ou mesmo matam seus filhos. Você pode até não entender, mas não é isso que espero de você que está lendo esse texto agora. Acredite, eu também não entendia e achava que era um pouco de exagero.

Mas como disse ao meu amigo em 07.05.2010, quer entender? Tenha um filho. AGORA!"

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